O Povo
Luiz Gonzaga sanfoneiro, cantor e compositor, transportou, a partir dos anos 1940, o "sertão musical" do Nordeste para o Rio de Janeiro. Ali construiu um espaço para a produção, representação e difusão ampla da cultura nordestina. Esse "sertão de memórias" guardado no "matulão" de Gonzaga, em contato com as novas experiências de sobrevivência na cidade grande foi enriquecido com a colaboração de parceiros poetas e músicos. Isto resultou em um repertório singular, que tomou conta do país e não perdeu seu vigor até os dias de hoje. Seu repertório permanece vivo, mesmo após a morte em 1989; bem como sua produção perpetua-se entre diferentes gerações de músicos e compositores.
No processo de afirmação da música popular nordestina, por ele desencadeado, encontram-se entre seus seguidores aqueles simples reprodutores de seu estilo e de seu conjunto típico, anônimos profissionais que deram vida a forrós nas mais distantes cidadezinhas; aqueles que têm produzido um trabalho mais elaborado, conservando o "sotaque musical" do Nordeste, a exemplo de Dominguinhos, de Sivuca e aqueles que, mais ousadamente, juntaram influências de Gonzaga a outras fontes, produzindo uma fusão de estilos com novas tecnologias.
Não deixando de lembrar que o próprio Gonzaga soube ser flexível em acatar mudanças resultantes das amplas "leituras" de seu repertório por esses intérpretes. Ele chegou a incorporar algumas dessas influências, as quais contribuíram para a realização de versões dos tradicionais baiões, xaxados, chamegos, etc. e que se tornaram parte do estilo de forró de nossos dias.
No decorrer das etapas de urbanização da música nordestina, Gonzaga experimentou períodos de sucesso e ostracismo em sua carreira, muito em razão das demandas da indústria fonográfica e, mais recentemente, da indústria de massa. Assim mesmo, os experimentos das novas gerações de músicos "apologistas" do cancioneiro de Gonzaga têm conseguido soerguer a paisagem sonora do sertão nordestino por períodos não somente sazonais. Citem-se, por exemplo, na década de 1970 a vertente universitária com Alceu Valença, Gonzaguinha, Elba Ramalho, Fagner, Geraldo Azevedo, Zé Ramalho, entre outros que, impregnados de matrizes oriundas do forró tradicional, introduziram padrões da música urbana.
Gonzaga não chegou a presenciar outros desdobramentos de sua música, manifestados, principalmente, nas tendências surgidas na década de 1990. Uma delas, inspirada em megaproduções da música sertaneja country, do axé music, desenvolve o modelo conhecido como forró eletrônico, o qual se caracteriza por uma mudança radical no instrumental - substituição do instrumental tradicional por um arsenal de instrumentos eletrônicos, incluindo-se sintetizadores - e pela inclusão de dançarinos que, sob um ritmo mais acelerado, desenvolvem, de modo eletrizante, coreografias revestidas de muita sensualidade.
Outra vertente, representada principalmente por jovens universitários, realiza a fusão de elementos do forró tradicional com fórmulas-padrão de reggae, rock, jazz, salsa. Com destaque, para o movimento pernambucano mangue beat, liderado por Chico Science, cuja brilhante trajetória foi interrompida em virtude do acidente de trânsito que ceifou sua vida. A força das experimentações do mangue beat tem estimulado não somente aos neófitos, mas até a músicos experientes. Uma das mais recentes mostras da influência desse movimento é o CD Baião de Viramundo: tributo a Luiz Gonzaga (1999), coletânea de músicas do repertório de Gonzaga, em versões renovadas que mostram a cara de vários grupos atuantes em alguns pontos do país ou até no exterior, na grande maioria artistas nordestinos. O repertório deste CD traz as características da expressão de uma cultura que, no seu processo dinâmico, não mais se reduz à reprodução fiel de suas matrizes. Melhor dizendo, mostra-nos uma atualização da tradição para que se tenha como resultado uma nova linguagem. Dentro dessa perspectiva, pode-se encontrar nas releituras do repertório gonzagueano elementos do rap (Vozes da Seca), elementos rítmicos do baião e do samba de partido alto misturados ao funk (O Fole roncou), mesclas do xote original com o reggae (Dezessete e setecentos), miscelânea de baião com frevo e heavy metal (Assum Preto), só para citar alguns.
Nestes 20 anos de sua "grande partida", pode-se afirmar que o legado musical de Gonzaga continua a imprimir marcas de sua presença entre nós, seja através de seu canto inigualável ou das diferentes versões que lhe imprimem os jovens músicos de hoje.
>> ELBA BRAGA RAMALHO é PhD e professora titular do Curso de Música da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
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